quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Entre o Louco e o Cadáver

As Bodas de Fígaro, Abertura
Mozart

Pela manhã Zaratustra afastou-se de sua casa e do descanso de sua casa para o trabalho nas colinas de estanho. Passou dez horas soldando circuitos em grandes chapas de silício sem que uma só descambasse para a retífica. Essas dez horas, porém, foram de uma desatenção clínica e de pensamentos soltos. Pela primeira vez em dez anos dez horas consecutivas sem retífica, e descuidadamente, o enlevaram:

"Estou enfastiado de minha sabedoria!"

Ao fim do dia Zaratustra desceu ao vale como quem rola pronto a derrubar alguém. No vale acontecia um número de equilibrismo público que não acontecia sempre. Certo acrobata, de braços abertos e sapatilhas e seu colorismo de roupas coladas de um jeito que nem sempre acontecia, andava sobre o cabo tenso, de um cume ao outro das colinas de estanho; atraia em si todo povo. Abaixo e em meio à multidão, a voz de Zaratustra rasgou a indignação pública, sem contudo desempertigar o equilibrista, falando assim:

"Abismem!, que se apresenta aos senhores um louco sobre suas cabeças; um louco, a tal altura que tomates e outras frutas podres não o podem alcançar mesmo os bem lançados.

"A julgar pelas órbitas de seus olhos, e como as giram, os senhores do público se amotinam e se corroem por dentro. Posso supor que desejem a queda do acrobata. Não aceitam estas retinas terem que lobrigar acima um número tão sem precedentes? Pois a mim não me deslumbra, homens – homens de couro rígido. Seus lombos estão açoitados por varas de luz e se enrijecem, as mesmas varas que os fatigam as retinas em soldas, naquelas colinas. Mas a mim hoje não me caíram sobre as costas.

"Chega a hora em que um homem, eu menos deus quanto todos dos senhores, rola da colina de estanho para assinalar o número equilibrístico a que compareci de abrupto, porém como eu estivesse de longe preparado para um tal acaso. Minha pouca surpresa não me permite confundir quem está suspenso no tesão do fio: é este o super-homem!

"O homem planta na terra e dela colhe os bens da terra. Aplica-se a mente a verdadeiras revoluções agrícolas, que se superam e o cansa de corpo e o encharca o colarinho. Dê-se fuga, porém, a qualquer suor de espírito e andará para mais perto do super-homem.

"Podem os senhores superar o homem e, no entanto, que esforço empregam nisso? É tempo de se aprumarem de seu próprio vazio. O fôlego entre uma e outra revolução agrícola, que espaço lhe dão, se logo pensam em tudo o que seja mais agricultura da solda e do estanho nessas colinas?

"Suas mãos manejam exclusivamente a flor da terra que se ensolara na colina e cresce. Mas senhores, de couro duro e nenhuma tragédia, como se ensolaram a si mesmos e se salvam do que soldam? Soldam seu próprio prazer em uma chapa, e reviram os olhos.

"Falta um pouco de prazer primário em toda vida.

"O risco de se dar a prazer, mas ao prazer bem mais fundo do que o de então, lança o homem de couro rígido ao primeiro passo no equilibrismo. Assim talvez não falte loucura e seu hálito se revigore.

"O homem pode tomar consciência de seu corpo, isso não sucumbirá a um bravo cachorro na rua. Nenhum gesto de consciência pode se anular à imoralidade pública a ponto de temer um cachorro. O principal cão, não o julguem externo, é o que o homem possui no corpo, e se a expressão corrente promete que ele seja algum demônio, não o digo bem isso. O cão, tão pior, vos vigia e vos pune.

"É tempo em que seus prazeres não se acabrunhem. Não deixem seus prazeres guardados em caixas separadas de seu corpo, enquanto se equilibram. São parte da mesma massa em risco de queda, a massa que é tudo e que é vácuo.

"O super-homem põe a seu serviço a investigação sexual de que falo; está aí a descobrir em si o outro que ainda é mais si do que a si próprio. A vida pueril suplica qualquer gesto de equilibrismo.

"O homem não tem emancipado seu hálito da terra e sua loucura não passa de uma cãibra física. O super-homem só com tamanha destreza se equilibra por haver guardado alguma cãibra de espírito.

"Vejam no alto quem deixou por um dia o seu turno e dedicou-se a um número de arte."

Ouvindo essas palavras, um senhor da multidão interveio:

"O que nos propõe o homem que rola das colinas? Veio atormentar nossas virtudes do trabalho e nossa dignidade? Por mais que nos interpele, não podemos todos subir à mesma corda do acrobata. Pois quem satisfaria a fome de nossos filhos?

"Não há corda para tantos pés, nem pés que sigam essa insanidade. Volta à colina e presta-se bem a seu serviço, homem louco. Não queremos ouvir suas anedotas sobre couro rijo, nem temos olhos fatigados mas honestos à luz em que trabalhamos. Vejo a demência em sua língua, o escárnio em suas caretas e sua lógica se obscureceu. Volta à solda e louva o esclarecimento que evola de seu maçarico."

Proposto o motim, o povo aglutinou-se às voltas de Zaratustra. Mas no alto alguém achou outro recurso: derrubar o equilibrista, sem quem Zaratustra não teria mais tema para enervar o público. Já subia o primeiro passo na corda um senhor de sapatos polidos e gravata marrom. Logo os olhares se redirigiram à corda.

O engravatado não se submetia à mesma mora do equilibrista. Correu aos calcanhares do inimigo, sem se dar tempo a desvios e à falta de acrobacia. Gritou num pulo:

"Corra, que piso seus calcanhares!"

E caíram ambos abraçados no espaço livre, bem sobre as costas de Zaratustra.

Zaratustra acudiu o equilibrista nos ombros; já estava morto. Com o fim do número, saiu do tumulto do povo, que se ocupava de ajudar o homem de gravata.

Andou Zaratustra por três dias e três noites sem que se desse conta de como ia longe, estando mais raras as casas e mais denso o espaço. Quando finalmente se desgastou de carregar o equilibrista, putrefato sobre seu lombo, descansou-o junto a pedra próxima e bateu à última porta de casa, atendido por um ancião de óculos – de meia-lua. Assim lhe disse Zaratustra:

"Veja aqui a imagem da tragédia pública e o morto que nela pesquei. Vimos de longe e estamos fartos de andar sem nenhuma conversa. Dá-me de comer e de beber."

O ancião retrucou ou relutou, ainda que voltasse logo carregado de cereais e água:

"Mas alimente primeiro o seu acompanhante, que parece estar mais exausto."

"Está morto, isso sim. Não o disse?"

"Isso pouco me importa, andarilho! Vem à minha casa e me pede alimento? Pois dê-lhe comida de comer e água de beber, e terá que comer e beber."

Nisso fechou a porta com vigor. Zaratustra não simulou qualquer alimentação do equilibrista, tomando para si as doações. Falou Zaratustra ao seu coração:

"Feliz do que dorme sem volta, depois de um número de arte. É ele o germe da terra e agora sabe ele a morte que o esperava. Que tenha sido um estouro de homem, agora que está morto não pode mais estourar e isso muito me importa. O último espasmo de vida desatou-o e esteve voando para a morte com a certeza ávida do nada."

E desembalou ainda outras palavras:

"Quem sou eu e o que falo? Sou qualquer coisa entre o louco e o cadáver. Comem, os cadáveres?

"Só sinto fome depois que como."

Assim falou Zaratustra ao seu coração.